Celular roubado dá uma dor de cabeça danada. Na verdade um baita estresse. Não é apenas pelo contratempo, ou os contatos profissionais que se perdem. Sempre na defensiva, tentamos viver no constante exercício de não permitir que pequenos dissabores desorientem nossa vida. Mas se pararmos para pensar, não é difícil, com tudo o que nos cerca, entrarmos em uma espiral de desilusão.
E assim, desiludido, chega o cidadão, agora sem celular, na sua casa, seu lar, aquilo que deveria ser seu porto seguro. De mansinho, com aquela cara de quem não quer nada, ou fazendo um estardalhaço gigantesco, não importa: ele está ali, tendo a pessoa celular ou não. O rosto, então, perde as linhas mais endurecidas adquiridas com os recentes acontecimentos. O coração também sereniza e suas batidas assumem outro ritmo. Lentamente, a tensão começa a escoar. Uma língua ligeira seca aquilo que poderia ser uma lágrima. Pula. Recua. E salta para o colo da criatura tão amada por quem esperou o dia inteiro.
Viver tem lá seus dissabores, mas há suas compensações também. Poder contar com o auxílio terapêutico de um cachorro é uma delas. A presença de cães na vida das pessoas é considerada até mesmo em pesquisas norte-americanas sobre longevidade. Tão importante quanto não fumar e ter amigos é ter um cachorro como companhia, isso para quem gosta de cachorros. Quem tem um cão nunca está sozinho. E se soubermos captar a essência do animal, o lado primitivo da vida, talvez tenhamos o entendimento de que tem, sim, tem muita gente estragada por aí, mas não precisamos nos fixar nessa parte ruim da realidade em que estamos inseridos. Viver é muito mais do que isso. Viver é tomar sol, se esticar no tapete, relaxar depois de um banho, aproveitar um prato de comida. Viver é se espreguiçar demoradamente depois de acordar do sono igualmente merecido. Viver é beijar, lamber, fuçar quem queremos bem. Está lembrando de alguém?
O cão é grato ao seu dono por ter dois de seus principais problemas resolvidos: alimentação e abrigo. O resto que a vida oferece é lucro, e o lucro é ter um dono para cuidar e agradar. Essa é a essência da vida canina: gravitar em cima de quem o ajudou. E viver é uma oportunidade extraordinária que vale cada respiro quando se tem um dono assim.
Exagerei? Não. É isso que ocorre em milhares de lares em todo o planeta. O benefício trazido por um animal de companhia, em especial cães e gatos pela conhecida interação, em nada se assemelha àquilo que se busca quando se adota uma criança por exemplo, comparação comum quando alguém afirma ser louco por seu cachorro. São coisas distintas. E bem distintas. Sabe-se que o maior benefício de um mascote é a companhia. Mas não estamos falando aqui de qualquer companhia, mas de companhia de qualidade, um agente de depuração mental, um auxílio à necessária higiene mental que tanto necessitamos para prosseguir nessa frenética luta que se tornou o dia a dia. Estar acompanhado de um cão é receber um sutil convite para descermos do pedestal de Homo sapiens e viver, brincar, tomar sol, esquecer que existe o tal do celular que, “quer saber?” – diria o cão – “Você não nasceu com esse celular, aparelho que danifica os ouvidos e lembra responsabilidades o tempo todo”. Cães são natureza. Eles nos lembram que estamos no caminho errado, que cruzamos a fronteira do bem viver, que estamos ocupados demais no cotidiano urbano para nos darmos conta de que somos, sim, animais, e que precisamos atender necessidades primitivas. E sem culpa.
Agora piorou: precisamos, então, de cachorros para aprender a ser gente? Sim, mais ou menos isso. Em um mundo tão perverso e conturbado, animais oferecem constância. Nem sempre é possível confiar no marido, não sabemos se estamos fazendo as melhores escolhas, não temos certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de quanto receberemos, afinal, em nossa aposentadoria e quando ela se dará. Temos medo de muita coisa. De sofrer. De sermos abandonados. E no meio de tantas incertezas, o caráter de nosso cachorro permanece o mesmo.
Tá, (pensa o leitor), agora o caráter do cachorro salva vidas…
A vida, não, mas o dia, sim. E sendo a vida composta de dias, talvez devêssemos compreender melhor porque algumas pessoas gostam tanto de seus animais. Além do afeto indiscutível, o cão é um elo que nos liga ao mundo natural, ao direito que temos de relaxar depois do almoço e de se espreguiçar ao sentir no rosto os primeiros raios de sol, pequenos prazeres da vida que perdemos no meio do caminho. E tem a gratidão. Podemos não nos dar conta disso, mas a falta dela nos consome. A gratidão é filha da solidariedade, aquela que tentamos manter acesa dentro de nós mesmo quando tudo ao redor sugere cuidar apenas do nosso nariz. Sem a gratidão, a solidariedade fica meio sem sentido. A fidelidade inabalável dos cães supre parte dessa necessidade de termos uma resposta positiva por aquilo que fazemos de bom, já que agir em nome do bem às vezes gera custos e dedicação. A bondade que fazemos para um cão reflete na essência do animal que, veja só!, sabe retribuir. E em dobro. Uma relação de troca que às vezes não encontramos nem mesmo entre pais e filhos, e não é difícil entender o porquê. Cão não é humano. Enquanto cães são puro afeto e dedicação, pessoas amam e odeiam na mesma intensidade, frutos de desilusões que cimentaram seu coração, ressentimentos que doutrinam os atuais relacionamentos. Contudo, independente do que se viveu, sempre é bom estar cercado de criaturas agradecidas, bondosas e que gostem da gente, e se esse pacote vier em forma de cachorro qual é o problema?