Cães e Gatos Sabem Ajudar seus Donos
4. Raíssa
“…Mãe e filha, no quarto, quase não se falavam. Não podiam, não conseguiam, todos pareciam estar rezando secretamente, uma súplica ao Senhor de que tudo fosse em pouco tempo esclarecido. Minha atenção voltei pra o telefone, para o maldito hospital cujo número ninguém atendia. Mari, Mari….filha amada, me liga logo, por favor! pensava entre uma tentativa e outra. E de repente, na ponta do meu pé, eu a vi. Raíssa, a cadela de estimação da Mariana, parou sentada na minha frente. A cocker spaniel preta de 4 anos, presente do Lucas no aniversário da Mari, ganhava do casal mimos e dengos como se filha deles fosse. Completamente esquecida – como me lembrar da cadela numa hora daquelas? – Raíssa, com a cabeça ligeiramente inclinada para a esquerda, sequela de antiga infecção no ouvido, procurava me entender. Acontece que ela era a última coisa que eu me preocuparia naquele momento, e nem pensei duas vezes antes de empurrá-la para o lado com o pé. Raíssa sentia a tensão e veio para perto de mim pedir colo, desejo que expressava apoiando as patas da frente sobre nossas pernas.
– Agora não, Raíssa! – disse Flávia, minha caçula, enquanto descia do corredor para a sala de estar. – Deixa o pai em paz!
Atordoada, Leoni veio logo atrás insistindo em ligar para o celular da Mariana.
-Ela vai ligar!! dizia em voz alta a si mesma, um mantra que dirigia aos céus, prece disfarçada que implorava para ser atendida. Não condenava sua atitude insistente, quase automática de uma mãe em pânico. Leoni, como eu, queria informações, queria respostas. O que sabíamos é que nossa presença se fazia necessária em um hospital distante 3 horas de nossa casa. E Mariana estava lá. Minha filha, que foi se divertir no litoral, pelo jeito ficou no meio do caminho. E a gente não sabia de nada…”
7. Beethoven X Dona Áurea
“…Sentada ao lado do caixão, minha mulher, Cristine, ainda pranteava a morte de sua mãe. Essa é uma parte nada agradável de um funeral: o rosto inchado, a maquiagem escorrida, o vestuário em nada ousado, a proibição das cores alegres, extinguindo, até segunda ordem, o vermelho e o rosa. Trajada com elegância e sentada em uma cadeira ao lado da mãe, um óculos escuros conferia à minha mulher um ar de beleza e frescor. Não era para menos: Cristine não tinha 35 anos, mas desde aquela manhã em nada lembrava a bela e risonha mulher com quem me casei.
Minha sogra, deitada em um bonito caixão preto ornado com detalhes em prata – aliás, quem pagaria essa conta? – ainda trazia seu cabelo grisalho preso atrás da nuca, um detalhe cuidado por minha esposa ou cunhadas. Embora não saísse de casa sem aquele coque germânico bem apertado atrás da cabeça, não partiu dela aquela arrumação em seu último dia de vida. Tantos anos puxando aquele cabelo, grampos aqui e ali, gel, rendinha preta, e que diferença isso fazia agora? Dona Áurea estava morta, deitada e branca como uma vela coberta por flores amarelas que por sinal irritavam meu nariz. Se do outro lado da vida, minha sogra estivesse assistindo seu velório, voltaria à vida só para ajeitar aquele coque agora todo amassado no travesseiro de um caixão. Pensando bem, que dessem uma última arrumada naquele cabelo. Qualquer possibilidade daquela véia voltar à vida me dava calafrios.
Com os braços para trás e caminhando devagar, meu cunhado, outro dos 3 genros de dona Áurea, se aproximou.
– Acho que sobrou pra gente carregar o caixão… – disse apreensivo, e eu bem entendia o porquê. Dona Áurea a aquelas oito alças significavam um peso estrondoso, e o único filho dela era um homem um tanto franzino. Se alguém dissesse que o féretro sofria um excesso de peso estava sendo educado. O esquife carregava um hipopótamo e, de repente, me ocorreu se o fundo do caixão estava preso com um número satisfatório de pregos, parafusos, roscas, o que fosse para não comprometer a eficácia do lacre para não se abrir.
-Quem sabe um carrinho? – ponderei.
Carlos me disse que sim, mas só até o final da rua. Depois os homens deveriam carregar o caixão pela grama até o túmulo, avisou a administração. É, o páreo era duro. Era preciso homens fortes para a parte final do cortejo da minha sogra sob pena de ser interrompido para alguém tomar água e pedir para ser substituído. Afinal, não era todo o dia que se carreava um filhote de elefante, ainda mais naquele calor. Entendido o drama, aceitei o convite de carregá-la até sua última morada.
-Pode contar comigo, Carlos, faço esse favor à Dona Áurea…- e completei ao pé do ouvido: – Você sabe, faço questão.
Carlos balançou a cabeça afirmativamente e bateu com a mão nas minhas costas, aquele tapinha típico de quem consola um grande amigo. Cabisbaixo, voltou sua boca bem perto da minha nuca.
-Depois disso, um charuto ou dois?
-A caixa inteira – respondi ao mesmo tempo em que apertava os lábios com os dedos. Carlos saiu de fininho. Se ficasse do meu lado mais cinco segundos, começaria a rir, e eu temia que essa manifestação disparasse um efeito cascata, quando então mais pessoas soltariam gargalhadas, outras rolariam no chão e até rojões estourassem no céu, tudo isso porque finalmente dona Áurea, a tagarela de mal com a vida, calou aquela boca. Até Beethoven, meu cachorro, teria seu momento. Se pudesse falar estaria dizendo: posso brincar agora ou a véia vai ralhar comigo?…”
8 – Um Trovão que caiu do céu
“…Tarde da noite daquele domingo, Trovão levantou a cabeça e um som gutural soou abafado em sua garganta. O ruído já era meu conhecido. Quando gente estranha se aproximavam da gráfica, Trovão primeiramente fazia esse som segundos antes de disparar furiosamente em direção ao portão. Ratos que reviravam o lixo abandonado no terreno baldio ao lado provocavam a mesma reação, um postura de pré-ataque, uma ira incontida em seus olhos que terminavam com latidos enfurecidos querendo abocanhar qualquer um daqueles bichos cor de névoa. Mas era o meu apartamento desta vez. Quem sabe estalos da geladeira tivessem deixando meu rotweiller apreensivo. Ratos? Por favor, essa não! A última coisa que eu precisava naquela espelunca era ter roedores invadindo minha cozinha.
Trovão se levantou do tapete ao lado da minha cama. Pronto, lá vai ele fazer fiasco de madrugada e incomodar os vizinhos mais uma vez. Quase ao mesmo tempo, empurrei os lençóis e fui atrás dele em direção à sala, peça que atravessaria para chegar até a cozinha. Em breve saberia o que o estava importunando. Trovão, porém, não foi até lá. Tão logo saiu do quarto, com a fúria de um gladiador, meu cachorro avançou contra as cortinas, uma cena bizarra que não fazia o menor sentido até eu ver um braço humano tentando se desvencilhar do ataque de um animal que, enfurecido, movia a cabeça freneticamente de um lado para o outro em meio a uma silhueta descoberta entre as sombras.
Meu coração disparou: um assaltante na sacada do meu apartamento a um salto de distância de onde eu, petrificada, ainda estava. O que aconteceu foi tão rápido que não lembro exatamente a sequência dos fatos. Trovão mordia um braço ao mesmo tempo em que um vidro se quebrava, um homem praguejava e eu me trancava no quarto, lugar de onde gritei a plenos pulmões pedindo ajuda aos vizinhos. O que eu conhecia como sendo medo não chegou a 10 % do pavor em saber que um homem entrara furtivamente na minha sala às três horas da manhã, e certamente não era para tomar cafezinho. E se não fosse Trovão, o que estaria aquele homem fazendo agora?”
11. Fiel Guardião
“…Acho que as coisas se buscam, se ligam, se ajudam. E tudo parecia se encaixar. Meu coração parecia menos oprimido e as preocupações se aliviaram com a presença do Cusco…Às vezes eu me flagrava fazendo perguntas, se a energia que emitimos não traz o que queremos, seja nosso pedido bom ou ruim. O Cusco, para mim, caiu do céu. E ele logo teve o instinto de proteção pela casa e pela família que também se tornou dele. O Cusco era assim, protetor, e isso era tudo o que eu precisava no bairro boca de fumo que fomos morar. E o mais fantástico de tudo isso é que ele apareceu depois de muitos dias em que fiquei pensando na necessidade de ter um cachorro de guarda.
…
A partir daí era só passar pelo portão que lá estava o Cusco atrás da gente. Ele entendia quando era hora de ir até o ponto de ônibus esperar pelas gurias. Cusco não tinha raça, pedigree, adestrador nem coisa nenhuma. Cusco era um baita de um vira-lata, bicho esperto e muito especial. Mas assim como veio, um dia ele se foi.
A morte dele me abateu de uma forma que não imaginava ser possível de acontecer. O luto em nossa casa foi completo. O Cusco foi um presente, uma pessoa que tivemos em casa. Ele me ajudou a sentir tranquilidade e a criar minhas filhas, e de repente nos descobrimos desamparados, sozinhos e sem presença forte e animada dele correndo pelo pátio. Nossa família não perdeu apenas um animal: perdemos um ente querido…”